“Esse encontro busca ser um exercício de perguntas – perguntas que não cessam”: tais palavras talvez resumam um dos disparadores iniciais trazidos por Thiago de Paula Souza, curador e educador convidado para conduzir mais uma edição do Laboratório de Crítica no CCBB SP. Trazendo perspectivas relacionadas aos diversos corpos que integram nossa sociedade na contemporaneidade, a pesquisa curatorial de Thiago reflete seu interesse em lidar com a presença concreta de artistas que estão entre a gente, assim como nas táticas e estratégias de comunidades que se articulam para desconstruir leituras hegemônicas da história. Ainda que inicialmente Thiago não definisse seus projetos a partir de uma perspectiva “decolonial”, nos dias de hoje a decolonialidade passou a ser um eixo propositivo importante em seu olhar curatorial.
A esse respeito, a conversa com os participantes do laboratório foi dividida em dois momentos. Primeiro, o curador nos convidou à leitura em coletivo do texto “Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência”, escrito pela artista Jota Mombaça. Em seguida, pudemos assistir ao curta-metragem “Apelo” (2014), realizado por Clara Ianni e Débora Maria Silva e selecionado para a 31ª Bienal de São Paulo. Nesse relato, trago algumas reflexões suscitadas junto ao grupo sobretudo a partir do vídeo partilhado pelo convidado.
Uma das primeiras críticas enunciadas por Thiago refere-se ao fato de que, embora atualmente haja grande presença de curadorxs negrxs muito bem qualificados, algumas exposições cujos conteúdos curatoriais se voltam a narrativas afro brasileiras ainda apresentam ausência completa de artistas e curadorxs contemporâneos afro-brasileiros ou racializadxs. Nesse sentido, ao exibir o vídeo, o curador compartilhou as seguintes indagações: “Quais os limites da colaboração, os limites de solidariedade?Quais os papéis de artistas em contextos sócio-políticos diversos?”.
Um “Apelo” ao presente
No curta-metragem “Apelo”, temos acesso ao Cemitério Dom Bosco, localizado no bairro de Perus, zona noroeste do município de São Paulo. Ao longo do filme, o cemitério é apresentado como um dos espaços públicos utilizados para o enterro de pessoas mortas pelo regime ditatorial entre as décadas de 1960 e 1980. Mais adiante, entretanto, entendemos que o mesmo espaço é utilizado, atualmente, para o enterro de pessoas “indigentes”. Às imagens do cemitério, são sobrepostas falas de Débora que chamam a atenção dxs espectadorxs para a luta pelo direito às memórias daqueles que tiveram suas vidas ceifadas pelo Estado.
Conforme afirma o texto disponível no site da Fundação Bienal de São Paulo, “a porta-voz do discurso e co-autora da obra, Débora Maria da Silva, teve seu filho assassinado em 2006, vítima de ações conduzidas por esquadrões da morte da Polícia Militar de São Paulo – citada ainda como uma das mais letais do mundo. Desde então, Débora lidera o movimento Mães de Maio, formado por mulheres que também perderam os seus filhos devido à violência policial, exigindo investigação e justiça.
Ao apresentar o vídeo, Thiago ressaltou a obra como um processo de colaboração entre uma artista branca, de classe média alta, estabelecida num certo circuito, e Débora Maria da Silva, que a partir de condição social bastante distinta assume o posto de coordenadora e idealizadora do Movimento Mães de Maio. Sem desconsiderar a seriedade e a ética que permeiam a pesquisa de Clara Ianni, o curador mostrou-se interessado nos conflitos postos a partir dessa situação de colaboração, assim como nas formas como esses conflitos se articulam em muitas produções contemporâneas. “Como os laços de solidariedade podem contribuir para processos de cura?”, questiona.
Passado e presente: um exercício de coexistência
Ao relacionar violências do presente e do passado do país, a obra de Clara Ianni e Débora Maria da Silva ressalta uma questão intrínseca à história do nosso território desde a invasão portuguesa do século XVI. A obra, portanto, é um apelo para que nós, vivos, possamos nos lembrar dos esquecidos de ontem e de hoje. Também nesse sentido as narrativas de nossos ancestrais e daqueles que já passaram por aqui devem ser lembradas, de modo que reconheçamos nossas próprias histórias e nosso território, buscando um lugar de elaboração simbólica dessas narrativas.
Tendo em vista o genocídio histórico e corrente das populações negras, indígenas e afroindígenas no Brasil, o vídeo amplia os próprios sentidos ao referir-se, também, às mortes políticas desses corpos e ao direito de lembrar e afirmar suas vidas enquanto viveram. De alguma forma, o curta-metragem é um apelo para escutarmos histórias que são constantemente apagadas e invisibilizadas, como se nunca tivessem acontecidoApós a exibição de “Apelo”, Thiago abriu espaço para conversarmos a respeito do vídeo e do texto lido anteriormente. Pude, então, compartilhar com o grupo aspectos de minha experiência anterior com o mesmo vídeo, como educadora estagiária na 31ª Bienal de São Paulo. Naquele contexto, a maior parte dos grupos de visitantes eram oriundos das periferias de São Paulo, e muitos experimentavam sua primeira visita a um espaço expositivo. Por conta disso, como educadora, buscava sempre recorrer a trabalhos que, embora trouxessem críticas à sociedade brasileira, abrissem também possibilidades de respiro e ampliação em relação aos lugares comuns geralmente atribuídos a grupos marginalizados.
Uma das questões apresentadas pelo convidado, por outro lado, parte do fato de que, dentre os crimes cometidos pela Ditadura Militar, geravam sempre maior comoção os que mencionavam estudantes ou professores brancos de classe média, deixando em segundo plano as mortes de pessoas racializadas naquele período. Em “Apelo”, entretanto, tais diferenças se apresentam como uma possível linha de conexão entre as autoras do curta, visto que a família de Clara Ianni também lutou durante a ditadura. Embora o conteúdo da obra esteja atrelado à dor e à morte de populações específicas, ali se estabelece também um encontro entre duas pontas de uma violência advinda da mesma direção. A elaboração artística conjunta entre artistas de realidades sócio-políticas inicialmente distantes traz, então, a possibilidade de cura, revisitação e, quem sabe, ressignificação dessas histórias.
A sociedade brasileira traz em sua história certa repulsa a encarar os aspectos mais difíceis de nosso passado, tradicionalmente maquiados a partir de mitos como a democracia racial, reivindicando uma suposta harmonia que ignora discursos daqueles que precisam ser escutados. Considerando essa perspectiva, que sobretudo na última década parece começar a se transformar, encontros como o que tivemos com o curador e educador Thiago de Paula Souza afirmam-se como potentes exercícios para lidar com “perguntas que não cessam”, ou ainda, nas palavras de Débora Maria da Silva, com a importância de “lembrar dos nossos”.