Em um domingo ensolarado, ao mesmo tempo em que recebia a exposição “Vaivém”, dedicada a uma pesquisa sobre as redes de dormir como um importante elemento da identidade brasileira, o espaço externo do CCBB DF colore-se de gentes e famílias. Tudo começa num cortejo em que a Cia. Ju Cata-histórias convida o público a se acomodar defronte a um palco colorido, montado com algumas bugigangas sonoras, barulhentas e convidativas, justamente porque cheias de vida. Um violão, percussão e duas vozes em conjunto convocam a multidão por entre os brinquedos-obras da área externa do centro cultural. As canções entoam refrões e são fáceis de adentrarem os ouvidos, chegando até os pés, festivos. Tem início, assim, uma singela e dançante convocação ao longo dos jardins.
Crianças, mães e pais devidamente acomodados, com sorrisos largos e estendidos, voltavam seus pares de olhos para Juliana Mado e Vinícius Bolívar, integrantes da Cia., convidados a conduzir mais uma edição do curso Múltiplo Ancestral, dentro do programa CCBB Educativo – Arte & Educação. O violão permeando e pautando cada uma das notas das três histórias trazidas contadas pelo par de intérpretes, que assumiam diferentes personagens a cada nova batida da percussão. As vozes partiam de apenas duas pessoas, mas se tornavam várias: ouvíamos tons graves e agudos, sisudos e festivos, assim como vozes que nos lembravam crianças e idosos.
Os cânticos utilizados durante a apresentação têm sua origem relacionada ao povo Fulni-ô, habitantes do município de Águas Belas, a 273 km da capital do estado de Pernambuco. Trata-se de um dos raros agrupamentos indígenas do Nordeste brasileiro que ainda possuem sua própria língua, o idioma Ia-tê. A percussão fulni-ô é intensamente marcada pelo maracá, instrumento de forte presença nessa edição do Múltiplo Ancestral.
Curumin, Maní e a formiga vermelha
A primeira das histórias trazia a figura do curumim, que se aproxima da onça e descobre a alma do animal, fortalecendo um laço de amizade que contrariava seu sábio avô. Esparramado em toda a sua sabedoria ancestral, ali figurada na trama da rede de dormir, o avô dizia que a onça não era bicho muito “afeito a afeto”. Ao fim, menino e onça nutriam seus laços em uma (re)descoberta mútua sobre a possibilidade de uma convivência integrada e harmoniosa entre o ser humano e a natureza.
A segunda narrativa, por sua vez, nos convidava a acompanhar a trajetória de Maní, uma menina indígena albina que fez nascer a mandioca – importante base alimentícia de muitos dos grupos indígenas brasileiros. Na versão trazida pela Cia. ju cata-histórias, Maní foi muitíssimo amada pelos pais, de maneira que a mandioca surge e é cultivada a partir do amor e dos laços familiares.
Por falar em mandioca, a última história nos levou até às poderosas terras astecas, onde o deus Quetzalcoatl mostra à formiga vermelha onde estão escondidas as espécies mais belas de milhos e cereais. No decorrer da narrativa, tatames verdes espalhados no chão se assemelhavam a uma grande floresta, alimentando uma atmosfera que remetia também visualmente a histórias indígenas. Pouco a pouco, personagens de tradições ameríndias passaram a habitar uma pequena floresta montada na área externa do CCBB DF.
Mesmo não tendo adentrado profundamente em debates atuais sobre pautas indígenas e ambientais, a atividade serviu como um convite para que espectadoras e espectadores pudessem se aproximar desse universo de saberes, e tal aproximação se deu de maneira ativa e verdadeiramente empática. Entre adultos e crianças, os corpos presentes na ação voltaram-se de maneira muito atenta e afetuosa à representação das histórias, quase como num abraço de rede de dormir, em que as tramas e costuras se acomodam às nossas curvas.