Como um momento de aprendizado e experimentação pode proporcionar um olhar transformador sobre o mundo? Se essa é uma questão que perpassa muitos contextos, foram também vários os momentos em que a pergunta se manifestou durante a oficina de serigrafia conduzida por Eudaldo Sobrinho, ou simplesmente Neno, durante o curso Múltiplo Ancestral realizado em agosto de 2019, no CCBB DF.
A oficina aconteceu à sombra da ingazeira que fica nos jardins do edifício. Simultaneamente à atividade, acontecia um evento sobre anime, com estandes, feira e mostra de cinema. Esse evento trouxe um público numeroso ao CCBB naquela tarde. Mesmo com sol forte e ar seco, muitas pessoas circulavam pela área externa, o que favoreceu a adesão à atividade.
Mesa, banquinhos, telas grandes de serigrafia, tintas, papéis grandes, mangueiras, secador etc.: assim que todo o material necessário foi organizado na área reservada à atividade, iniciamos uma conversa na qual os objetos foram apresentados em suas formas e funções. A partir dessa conversa, foi possível perceber que a técnica a ser compartilhada agrega objetos não necessariamente destinados à serigrafia, mas que, naquele contexto, se tornariam fundamentais para a experiência.
O tempo, a propósito, foi outro elemento experimentado de forma não-usual na oficina. A nossa relação com imagens, ou ainda com o consumo de imagens, é uma característica de um modo de vida contemporâneo e ocidentalizado, que (o)corre a boas doses de velocidade. No âmbito do fazer, entretanto, as imagens demandam tempo para ficarem prontas. Nesse sentido, foi um desafio oferecer ao público a experiência de fazer uma única imagem, mesmo que imprimível diversas vezes, ao longo de duas horas.
Por outro lado, o convidado Neno trouxe um nítido entusiasmo na partilha do seu saber. Parte do público ficou do início ao fim; outra parte, devido à hora do almoço e às necessidades das crianças, esteve conosco parcialmente; algumas famílias se organizaram em revezamento para acompanhar a maior parte possível da atividade; outras e outros estiveram conosco somente na hora da impressão das cópias. A circulação dos públicos na atividade foi, de certo modo, um testemunho da nossa relação com as imagens e do próprio ritmo da vida contemporânea. Na técnica da serigrafia, contudo, o tempo é desacelerado tanto nas aplicações sobre a tela quanto nos instantes de exposição ao sol e secagem dos trabalhos.
Da repetição à imperfeição
A proposta do convidado para a composição da imagem foi “o que vale a pena ser repetido?”. Assim, numa tela coletiva de serigrafia, surgiram vários desenhos, dispostos numa composição livre. Dessa composição, após os devidos procedimentos, surgiriam quantas cópias desejássemos. Material e simbolicamente, o encontro entre o que vale a pena ser repetido e a possibilidade de inúmeras repetições é uma questão que perpassa muitos contextos do tempo presente e dos nossos modos de vida. Assim, para além da aparente aleatoriedade, convido quem está lendo a responder: valem a pena se repetirem macacos, tartarugas, o sol, vassouras, flores, letras iniciais de pessoas queridas? Esses foram alguns dos desenhos feitos pelos participantes.
No decorrer do tempo de impressão das cópias, produzidas sob a luz do sol intenso do cerrado e a partir da tela que trazia as imagens escolhidas, Neno falou sobre nossas relações com o fazer das coisas, com as técnicas e as barreiras que frequentemente criamos para nós mesmos.
Em sua visão, o que pensamos sobre o “fazer bem feito” e o “faça-você-mesmo” não são ideias positivas somente por se relacionarem favoravelmente às nossas capacidades técnicas, ou ainda com a satisfação do ego ao executar uma tarefa que poucos conseguem. Para ele, o fazer, seja fazer uma imagem, um bolo ou um avião, torna-se frutífero justamente no momento em que se transforma em um encontro com os “defeitos”, ou seja, com tudo o que está fora do planejado, do tecnicamente determinado, e também com o que escolhemos como certo e errado, defeito e qualidade, bem-fazer e mal-fazer.
Aceitar e compreender o que escapa da previsibilidade e da expectativa da técnica ou do planejamento, seja nos fazeres da vida ou, como neste Múltiplo Ancestral, durante uma oficina de serigrafia: este parece ter sido o generoso convite oferecido por Neno ao partilhar conosco sua prática artística. “O que vemos como defeito pode se transformar em linguagem. O que julgamos uma falha pode vir a ser parte do nosso ser no mundo, que é único”, afirmou o convidado, em um dos momentos finais do encontro.