Já há alguns anos, a pesquisadora e professora Virgínia Kastrup, junto a estudantes de psicologia da UFRJ, vêm investigando táticas e estratégias experimentadas por equipes educativas de diferentes museus de arte e centro culturais. Ao grupo liderado por ela, interessam mais especificamente as experiências relacionadas ao acesso de pessoas com diferentes tipos de deficiência visual ao conteúdo de exposições de arte. Convidada pelo Programa CCBB Educativo – Arte & Educação a conduzir um encontro do curso Transversalidades no CCBB RJ, Virgínia compartilhou com os participantes algumas de suas pesquisas em torno de conceitos-chave como cognição, deficiência, representação e invenção.
“Nessas pesquisas, eu trabalho sempre com temas cognitivos, ligados aos processos de conhecimento, atenção, aprendizagem, percepção, pensamento etc., entre pessoas com deficiência visual. E tenho feito um movimento de deslocar um pouco o problema da acessibilidade: não ficar apenas pensando na pessoa com deficiência, mas pensar que é preciso fazer transformações – em termos de produção de subjetividade, de transformação social – com as outras pessoas, com todos”, adianta a professora, antes de entrar propriamente na apresentação do conteúdo.
Na sequência, Virgínia colocou aos participantes dois problemas: O que entendemos por cognição? E o que entendemos por deficiência – especialmente por deficiência visual? Interessada em contribuir para a construção de políticas de acessibilidade para museus e centros culturais, assim como para escolas e universidades, ela destaca a importância de rever tais conceitos, por vezes calcados em perspectivas hierárquicas e assistencialistas.
“Para politizar a discussão, precisamos colocar muito bem como a gente entende as formas de conhecer e as formas de estar no mundo das pessoas com deficiência”, analisa Virgínia. Segundo a professora, um passo importante é superar quaisquer práticas que subjuguem, a partir de uma visão ‘capacitista’, as experiências e percepções de pessoas com algum tipo de deficiência.
Da representação à invenção
A ideia de cognição, nos explica Virgínia, está ligada ao conhecimento e aos “processos de conhecer”, os quais são múltiplos e podem ser percebidos, também, a partir de múltiplas perspectivas. “Existem muitos autores, hoje em dia, que questionam uma ideia mais tradicional que entende o conhecimento como a representação de um mundo pré-existente. Segundo esse modelo, uma pessoa com deficiência visual não conheceria corretamente o mundo, porque a maneira correta de conhecer seria a maneira visual”, pondera, chamando atenção a preconceitos geralmente associados a essa perspectiva.
Como possíveis contrapontos ao modelo de “representação”, Virgínia defende olhares que entendem o processo de conhecimento a partir da ideia de “invenção”, citando os filósofos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varella como importantes referências. “Podemos entender o conhecimento como um processo inventivo, um processo criador, um processo de invenção de si e do mundo. Conhecer não é apenas representar um mundo dado, mas um processo de constituição subjetiva, de produção de subjetividade”, afirma.
“Segundo esses autores, o sujeito e o objeto não preexistem ao conhecimento: eles serão efeitos das ações de conhecer. Então, se tenho práticas cognitivas que utilizam muito a visão, vou desenvolver um sistema cognitivo em que a visão é mais importante. Se tenho práticas cognitivas que utilizam o tato ou a audição, vou desenvolver um sistema cognitivo diferente, mas que vai perceber coisas que normalmente nós, os chamados videntes, não conseguimos acessar”.
Da hierarquia à singularidade
A partir dessa oposição, Virgínia convidou os participantes do encontro, em sua maioria professoras e professores, a refletirem sobre os caminhos mais comumente trilhados pelo ensino escolar. “Ensinar uma criança é transmitir informações sobre um mundo dado? Ou trabalhar na produção de subjetividade e na invenção do próprio mundo?”, questiona a pesquisadora, estimulando a renovação de perspectivas sobre as noções de conhecimento e aprendizado.
Em seguida, passamos a problematizar o próprio conceito de deficiência, tratado como um produto de opressivas estruturas sociais. “Quando comecei a trabalhar com deficiência visual, percebi rapidamente que eles tinham um modo de conhecer que não cabia na ideia de falta, de déficit, de deficiência. O mais importante é estudar o tato, a audição, o corpo multissensorial – e não o corpo sem visão”, contrapõe. A deficiência passa, então, a ser tratada como singularidade, e não como inferioridade ou falta.
“O grande desafio para a deficiência visual, no caso da experiência com a arte, é que a pessoa seja capaz de perceber através do tato, ou do seu corpo multissensorial, o espírito de uma obra, a questão que a obra está trazendo”, defende, fazendo referência ao conceito de acessibilidade estética.
Como provocação final aos participantes, Virgínia ressaltou a importância de se trabalhar com grupos heterogêneos entre videntes e não-videntes, constituindo uma política de partilha, encontro e troca de experiências. “Você se relacionar com uma pessoa com deficiência é você se abrir para outros sentidos e tentar sair um pouco do que a gente chama de visuocentrismo. E quem é beneficiado com a inclusão? Todos”, sintetiza.