Ao redor da mesa, uma roda de conversa cresce aos poucos, com textos e projetos que se apresentam para uma futura leitura coletiva. Antes de prosseguir propriamente à atividade, todas as pessoas se apresentam: nomes, signos, origens, interesses e motivos que os levaram a estarem no curso Processos Compartilhados, com o curador e educador Thiago de Paula Souza, dentro do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação.
Seguimos a uma breve apresentação do nosso convidado e damos início, então, à leitura do primeiro texto: “Rumo à uma Redistribuição Desobediente de Gênero e Anticolonial da Violência“, da artista Jota Mombaça. A proposta de Thiago é simples: cada participante lê o que desejar em voz alta para todo mundo, e, assim, as cerca de 20 páginas foram sendo engolidas por nós. O momento foi denso: denso pelo título, denso pelo conteúdo, denso pelas pessoas que estavam presentes, denso pelo espaço. A primeira parte do encontro, realizada antes de uma pausa para um respiro entre as suas cinco horas de duração, foi assim composta por densidades verbalizadas a partir da leitura coletiva que nos unia.
Antes de propriamente ter início o debate, Thiago nos mostra uma foto da equipe curatorial da Bienal de Berlim de 2018, composta pela sul-africana Gabi Ngcobo, a estadunidense Nomaduma Rosa Masilela, a alemã Yvette Mutumba, o ugandês Moses Serubir e ele mesmo, todas pessoas negras. A foto estampava um dos principais jornais da cidade de Berlim, com a seguinte manchete, em tradução livre: “O negro é a nova arte”. Como uma foto com tantas possibilidades potentes de representação pode ser capturada assim, em um único título? Por que o destaque não foi dado à pesquisa de cada pessoa, principalmente se for levado em conta que os membros são de países diferentes? E do que se trata, afinal, a própria Bienal, objeto daquela reportagem, intitulada “We don’t need another hero”? (Não precisamos de outro herói).
Para além dos marcadores sociais
Logo em seguida, Thiago tece comentários sobre as falas de apresentação de alguns dos participantes, destacando um motivo recorrente entre os que levaram essas pessoas a assisti-lo: “ouvir um curador negro no CCBB RJ”. A razão primeira que as levaram a ouvi-lo seria, então, a questão racial? Mas e quanto à sua pesquisa? Será que as pessoas são levadas a ouvir um curador branco por seu trabalho ou pelo fato de ser branco?
Começa, assim, um debate a respeito dos marcadores que a estrutura racista, misógina e heterocissexista nos impõe, e de como as pessoas brancas, cis ou do gênero masculino não precisam se identificar como tal, como se tais marcadores representassem um status do que é normal, universal e natural. Por qual motivo, entretanto, não podemos classificá-lo também? Por que não podemos marcá-los, quebrando a ideia desses grupos como um padrão supostamente neutro ou ainda, nas palavras de Thiago, como aqueles “quem têm direito à não visibilidade”?
As vozes se multiplicam, e as opiniões caminham pela sala, em meio a uma atividade que não visa fechar discussões, mas levantá-las. Surgem posições divergentes e complementares: ”O que é o universal?”, “Como quebrá-lo?”. Discutimos ainda sobre a importância de se ressaltar as questões de gênero, raça e classe em espaços historicamente dominados por uma elite econômica, branca e cis, justamente para marcar uma posição diferente e caminhar em direção a uma representatividade que permita a outras pessoas enxergarem a possibilidade de ocupar esses espaços.
Em busca de outras representatividades
Ao longo de toda a conversa, destacamos situações em que algumas pessoas são ouvidas apenas por causa de marcadores sociais: ser trans, negro, mulher etc. A representatividade se daria, nesses casos, como uma obrigação, gerando situações mais do que esperadas: pessoas negras chamadas apenas para falar de questões raciais ou ainda mulheres chamadas apenas para conversar sobre feminismo, entre outras. Enquanto isso, uma pessoa branca poderá ser chamada para falar sobre qualquer coisa, inclusive sobre os temas e questões que afetam todos os corpos.
Outra pergunta surgiu, por fim, em meio ao debate. Constatando que o sistema capitalista se estrutura justamente a partir da opressão, seria possível fugir destes marcadores? Como ser visto não apenas a partir deles?
Algumas propostas também surgiram: por exemplo, marcar os não marcados. Pensando mais especificamente no campo da mediação cultural, falamos ainda sobre a possibilidade de realizar visitas apresentando a obra do artista branco X, da artista cis Y ou ainda do artista homem Z – os demais, por sua vez, seriam apresentados apenas como artistas. A partir deste encontro, podemos enxergar alguns caminhos para inverter a suposta normalidade em que vivemos – ou melhor, para quebrá-la. Afinal: “We don’t need another hero”.