Um domingo de pura lacração encheu de pop um edifício dos anos 1930, que viveu mais acostumado com a erudição dos museus do que com a presença de baterias e glitters de Carnaval. “Todas as garotas solteiras”, os garotos, os e as não-solteiras e pessoas não-binárias foram convidades
a se juntar ao Bloco Garotas Solteiras no dia 24 de fevereiro de 2019 no CCBB-BH. Em pleno pré-carnaval belorizontino, alguns integrantes do bloco ministraram uma oficina de coreografia pop e uma oficina de maquiagem para o Carnaval, reforçando o lema do Garotas Solteiras: “Lacrar é um ato revolucionário!”.
“Liberté
Égalité
Beyoncé”
Um evento como este pedia para encher. E, de fato, o correspondente evento no Facebook já tinha 1,7 mil pessoas interessadas. Imagine se um quarto dessas pessoas viessem, de fato: mais de 400 pessoas no foyer do teatro do CCBB-BH, prontíssimas para ir até o chão e se montar para o Carnaval. Sonho para alguns, pesadelo para outros, o evento no Facebook precisou ser cancelado porque tomava proporções maiores do que esperadas. No final das contas, o domingo estava menos cheio do que gostaríamos, o que deu um gostinho salgado na boca.
“O exército é pesado, a coreô é do poder
Vem junto com Garotas, solte a diva em você!”
Mas “é difícil dançar com o demônio nas costas, então balance ele pra fora!”. Dançar é uma das melhores maneiras de espantar o que tem de ruim dentro da gente. E acho que o Garotas Solteiras sabe disso. Quando a música começou a tocar, e a Maíra Rodrigues começou a ensinar a coreografia, nada além de sorrisos habitava nossas faces. De crianças muito pequenas a adultos, meninos, meninas e menines se soltaram e se amaram, deram seus closes e acordaram pra dança. Acordaram assim: perfeites! Pegar os passos era um desafio encarado como brincadeira e, apesar das dificuldades, foi lacrador.
Vem mina, bi e trans, sapatão e afeminada
No Garotas Solteiras “topamo” qualquer parada
“Todos nascemos pelados, e o resto é drag”: a frase da drag internacionalmente famosa Ru Paul fala muito sobre o que somos enquanto humanos, em uma mensagem de união. Drag é sobre isso também, sobre amar ser quem se é e querer amar o outro também. “Não tem nada de errado em amar quem você é, porque você foi feita assim!”. É sobre entreter e espalhar amor com diversão. A oficina de maquiagem para o Carnaval foi muito ligada à prática de montação – montar-se antes da performance como uma drag queen. Esse é um momento especial, de amor e
apreciação do que e como somos: “Eu estou no caminho certo, meu bem, eu nasci assim!”.
“Garotas Solteiras somos todas nós
Chega mais perto pra ouvir a nossa voz”
Charlotte, drag queen famosa de Belo Horizonte, ensinou com cuidado e carinho várias dicas de maquiagem para o público, principalmente feminino. Quando ela pediu um voluntário para demonstrar a maquiagem ao público, quem se apresentou foi uma pessoa trans masculina, que se sentou na frente da sala e se permitiu ser maquiado. Alguns tropeços relacionados a adjetivos de gênero aconteceram, mas foram superados: “essas feridas vão se curar, eu sei que tudo vai ficar bem… Tudo vai ficar bem…”. Além das lições de lacração, a oficina mostrou como as coisas podem ficar bem: com acolhimento, carinho e aceitação, pedindo desculpas pelos erros, aprendendo, compartilhando e crescendo juntos.
Quem nunca tinha se maquiado o fez pela primeira vez. Quem já tinha se maquiado pôde ajudar outras pessoas, mesmo com o parco conhecimento que já tinha. Pode parecer superficial, assim, lendo. Mas imagine o que é o toque das pessoas sobre sua pele. O olhar das pessoas sobre você. Imagine se todos os toques e olhares que lançassem sobre nós fossem positivos e carinhosos. Imagine se você pudesse pedir ajuda a quem está ao seu lado, sempre. Não era tanto sobre a maquiagem, era sobre estar ali junto, olhando com carinho para si e para quem está em volta, pensando: “Eu acordei assim: perfeita!”. A revolução, às vezes, começa em nós. E esse foi um momento de luta e autoaceitação.
“A gente chega na batida, vem com amor e respeito
E traz a luta por aquilo que é nosso por direito”
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Imagem: Bloco Garotas Solteiras/Divulgação
Ação realizada no dia 24 de fevereiro de 2019, em Belo Horizonte (MG), como parte do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação. Com periodicidade mensal, o Múltiplo Ancestral é uma plataforma de trocas entre o público e as mestras e mestres ligados a diferentes saberes e práticas culturais, articulando a memória e o patrimônio. Alia a tradição oral, o afeto e olhares sobre o material e imaterial, fortalecendo a relação do sujeito com a diversidade.