O ato de circular pela cidade é tradicionalmente um clichê paulistano. São Paulo carrega em suas veias muitas histórias e também os caminhos diariamente traçados por povos que erguem e movimentam a capital paulista. No entanto, perceber nesses transeuntes um olhar atento aos detalhes da cidade – hábito bastante comum entre aqueles que praticavam “footing” no começo do século passado – é certamente menos comum agora, quando São Paulo se consolida como um dos mais populosos centros urbanos de todo o mundo.
Que tal pararmos para conhecer um pouco mais sobre alguns povos que fazem parte da história de uma das maiores cidades do mundo? Para nos ajudar nessa experiência, tivemos a colaboração da turismóloga Vera Lúcia Dias. Atuando há muitos anos como guia turística da cidade de São Paulo, ela veio até o CCBB para participar do “Com a Palavra…” e nos contar sobre as influências negras e indígenas no coração da megalópole.
Negros e indígenas
São muitos os cantos e detalhes da cidade que provocam nosso olhar. A cada esquina, podemos encontrar uma música, um monumento, um manifesto, um artista de rua, uma praça e alguma oportunidade de enxergar com outros olhos o horizonte que nos cerca.
Ao andar pelo centro de São Paulo, costumamos ser tomados pela sensação típica do corpo paulistano apressado, já que as atividades comerciais se concentram fortemente nessa região – não por acaso, foi aqui que a cidade começou a crescer. Durante muito tempo, aliás, a capital paulista se resumiu apenas à região conhecida como triângulo histórico. Entretanto, conforme a cidade enriquecia, mais e mais pessoas foram chegando, até que ela se tornasse a megalópole que conhecemos hoje.
Muitos povos marcaram e ainda marcam essa cidade, no entanto há uma presença inegável de dois grupos que merecem destaque: os povos negros e os povos indígenas. Marcados por uma história de violência e escravidão, esses povos que sofreram com o apagamento de suas culturas se mostram ainda hoje resistentes e seguem seus caminhos de luta, tanto na cidade de São Paulo quanto em outros pontos do Brasil.
O Pátio do Colégio
A luta indígena não é algo que ficou no passado: ainda hoje, diversos povos se organizam politicamente em busca de garantir aquilo que lhe é primordial: a conservação e a delimitação das terras indígenas.
Situado no centro de São Paulo, o Pátio do Colégio é amplamente reconhecido como o marco inicial da cidade. Vera nos aponta que nessa região, os jesuítas construíram uma escola para catequizar crianças indígenas, constituindo um marco que serve como exemplo do apagamento da cultura desses povos pela imposição dos portugueses.
Em 1925, cerca de 400 anos depois da fundação do pátio, foi instalado um monumento chamado “Glória Imortal aos Fundadores de São Paulo”. Criada pelo artista italiano Amadeo Zani, a obra reafirma uma leitura colonizadora sobre os povos indígenas: nela, encontramos uma mulher ao topo, representando a cidade, e abaixo dessa mulher, como se carregassem o monumento, os indígenas que construíram o pátio.
Uma luta de 500 anos
Segundo dados recentes do IBGE, cerca de 818 mil de pessoas se autodeclaram indígenas em território brasileiro, organizadas entre mais de 300 povos e 270 línguas. E apesar de um amplo histórico de luta social, esses povos ainda sofrem dificuldades para ter seus direitos assegurados.
Somente na constituinte de 1988 foram garantidos por lei o direito aos indígenas o direito de ter suas próprias culturas, línguas e territórios. Naquela ocasião, o líder indígena Ailton Krenak se pronunciou para os parlamentares, declamando um discurso histórico no qual denuncia toda a violência sofrida pelos povos indígenas, ao mesmo tempo em que pinta o rosto com jenipapo, fazendo referência à sua própria cultura.
Vera nos questiona: Mas por onde andam, hoje em dia, os povos indígenas que vivem em São Paulo? A esse respeito, é importante lembrar que há muitas aldeias indígenas na cidade de São Paulo, geralmente bem distantes da região central e localizadas nos extremos da cidade. Tanto na Zona Sul quanto na Zona Norte, por exemplo, podemos encontrar integrantes do povo Guarani. Seja nessas ou em outras regiões, tais povos seguem cultivando suas terras e lutando por direitos que viabilizem a continuidade – e também o desenvolvimento – de suas práticas sociais e culturais.
Enquanto isso, no centro da capital paulista, temos o monumento “Índio caçador”, entendido por Vera Lúcia como tardio representante do olhar branco sobre aquilo que julga ser o indígena. Produzida e instalada nos anos 1940, a escultura segue a mentalidade da época, que entendia os indígenas como povos selvagens e defendia a adequação de suas culturas aos modos europeus.
Remoções, apagamentos e luta por liberdade
Os povos negros também marcam a cidade com sua história. Dentre tantos apagamentos, é pela insistência e resistência que seus valores e sua cultura seguem sendo mantidos e celebrados.
A trajetória da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, por exemplo, é apontada pela pesquisadora como uma tentativa – racista – de ocultamento dessas pessoas. Construída entre 1721 e 1722 na região hoje chamada de Praça Antônio Prado, a igreja foi demolida em 1903, devido a obras urbanísticas no centro da cidade, e mais tarde reconstruída do outro lado do rio Anhangabaú, local onde se encontra até hoje.
Situações como essa, infelizmente, são comuns. Também localizado na região central, próximo ao Triângulo Histórico de São Paulo, o bairro Liberdade recentemente sofreu uma alteração em seu nome: na estação de metrô local, agora lemos “Japão Liberdade”.
A partir das reflexões anteriormente compartilhadas por Vera Lúcia, podemos expandir a conversa e entender que essa medida visa enaltecer a migração do povo japonês no início do século XX, apagando a presença e a memória dos povos negros que ocuparam a região muito antes de os japoneses chegarem. O nome Liberdade se dá por conta de um acontecimento que ocorreu na Praça da Liberdade – antes chamada de Praça da Forca.
Naquela ocasião, um sujeito escravizado, chamado Francisco José das Chagas e conhecido como Chaguinhas, seria enforcado em praça pública. Ao longo do processo, entretanto, a corda arrebentou três vezes, gerando comoção entre aqueles que assistiam à cena e passaram, então, a gritar por liberdade.
Um mestre da alvenaria
Pensando na história de São Paulo, outro nome importante da cultura negra é Joaquim Pinto de Oliveira. Mais conhecido como Tebas, ele viveu entre 1721 e 1811. Ao longo da vida aprendeu o ofício da alvenaria e teve um papel marcante ao introduzir essa tecnologia na arquitetura de São Paulo – naquela época, eram mais comuns as construções feitas de taipa.
Entre os diversos trabalhos que realizou na cidade, a pesquisadora destaca o Chafariz da Misericórdia, tradicionalmente usado por africanos escravizados para buscar água no centro da cidade. Hoje em dia, conta Vera Lúcia, grande parte de suas obras infelizmente foram perdidas, mas alguns trabalhos permanecem no centro histórico da cidade, como as fachadas da Igreja da Ordem Terceira do Carmo e da Igreja das Chagas do Seráfico Pai São Francisco.
Inspirados na história de Tebas, o artista Lumumba Afroindígena e a arquiteta Francine Moura criaram em 2020 uma escultura para homenagear essa figura tão importante para o imaginário e a resistência negra em São Paulo. A partir de sua profissão, Tebas conseguiu comprar a própria liberdade e criar projetos importantes para a capital paulista, e o destaque trazido pelo monumento nos convida a pensar sobre outras figuras locais que foram importantes para a história da libertação dos povos negros.