O corpo é nossa primeira casa, a natureza é a casa de todos, e cada casa deve ser cuidada com todo carinho. Essas foram algumas das muitas lições compartilhadas a partir de contações de histórias trazidas por Niara do Sol, indígena Funil-o/Cariri Xocó, durante suas visitas ao CCBB RJ para conduzir oficinas de cultivo para crianças. Ao longo de três encontros, realizados sempre em segundas-feiras de janeiro, um de seus maiores patrimônios foi compartilhado com o público: o conhecimento sobre a natureza. Ao abordar práticas indígenas de cultivo de plantas, a ação se constituiu como um estímulo para aprendermos a cuidar da natureza logo no início de 2020..
Partindo das diversas hortas criadas no Museu de Arte do Rio, a exemplo da horta Dia Guata Porã, no Estácio, e também no Morro de São Carlos, assim como de saberes herdados das etnias que a formaram, Niara trouxe ao público conhecimentos orais e práticos de um cotidiano vivido em plena comunhão com a natureza. A cada novo encontro, ela colocou tais conhecimentos em prática, sempre em colaboração com os diversos corpos presentes na atividade. Para além de suas dimensões práticas, no entanto, a ação se afirmou como uma potente reflexão sobre nosso patrimônio natural e os modos de respeitá-lo, ressaltando a muitos dos participantes o pouco conhecimento que possuímos acerca dos usos e cuidados em relação à natureza.
Sementes para o mundo
Os conhecimentos ensinados por Niara são, portanto, aprendidos com mãos na terra, sempre destacando a importância de sentirmos a matéria e nos entendermos como parte dela, a exemplo dos outros animais que dela precisam para viver. Suas falas sobre as plantas buscava ativar múltiplos sentidos, como o tato, o olfato e o paladar. Niara trouxe ainda um grande destaque ao fato de que os cuidados com as plantas devem ser como os cuidados pessoais que temos conosco: cada planta, afinal, também precisa de uma cama fofa, água para saciar a sede, comida rica em nutrientes e espaço adequado ao seu tamanho.
A ação foi dividida em dois eixos: um deles pressupunha o cuidado do corpo a partir das plantas, o outro, os cuidados com a terra, a partir de nós. Os dois eixos se alimentavam de forma mútua, reafirmando a todo momento que tudo faz parte de um grande ciclo natural.
Niara do Sol nos apresentou sementes de moringa, urucum e algodão, ensinou seus usos e demonstrou como fazer “camas” para as sementes: tanto camas de algodão, quanto de terra. Ela nos ensinou ainda sobre a quantidade de água a ser usada, assim como sobre e os cuidados que cada planta pede para crescer, até o momento em que pode retribuir os cuidados humanos com suas propriedades paisagísticas, alimentícias e terapêuticas. Cada participante saiu do encontro com Niara levando uma pequena planta – e assumindo o compromisso do cuidado.
Época de plantio
Mas não somente o verde foi plantado. Para além da lida com a terra, também foi feita uma consistente semeadura do cuidado do corpo, já que o corpo também é casa, sendo entendido e respeitado como tal. A esse respeito, técnicas de massagem foram ensinadas como instrumento para retirar tudo aquilo que o corpo não precisa para viver, seja uma dor, o cansaço ou mesmo energias ruins. Pudemos aprender também como usar óleos naturais e potencializar seus princípios ativos, entendendo ainda como fazer isso em sociedade: um corpo que pode massagear o outro, em práticas similares ao funcionamento de uma comunidade saudável.
“Para que o corpo seja saudável, em movimento deve estar”, afirmou Niara do Sol. Para que nossos corpos estivessem vivos e em movimento, a convidada não exitou em pular corda e nos convidar a acompanhá-la, assim como a brincar com atividades e instrumentos indígenas, sons de pássaros foram feitos pela sala, como também alongamentos e desafios de memória, de modo que nossos corpos pudessem se lembrar e memorizar que suas estruturas foram feitas para andar, correr e interagir. Ao longo da atividade, os corpos dos participantes foram acordados por fora e por dentro, respectivamente com exercícios e alimentos como bolos naturais e frutos trazidas de sua horta, carregando a essência de serem alimentos sido produzidos com afeto e dedicação – em vez de produtos gerados pela indústria e vendidos em supermercados.
Diários do arar
Como participação especial na última das três visitas de Niara ao CCBB RJ, tivemos também a presença da artista indígena Ana Kariri. A partir da vivência de registrar a história da sua família e sua etnia kariri, ela ofereceu aos participantes um laboratório de criação de livros para armazenar tanto as informações adquiridas com Niara, assim como também reflexões surgidas no cotidiano. Dispostas em livros de tecido natural, essas informações e reflexões ficariam guardadas e protegidas para o futuro, mantendo ainda a ligação com a natureza representada pelas sementes e o algodão utilizados em sua confecção.
Por fim, podemos definir esse tempo com Niara como um reencontro com o nosso eu ancestral, no dia a dia apagado por inúmeras demandas que nos amassam em casa e no trabalho. Um encontro que serviu como meio de nos religarmos à terra, de nos entendermos como parte dela – e não como os donos que, por vezes, pressupomos ser. Ao cultivarmos a terra e também nossos corpos, pudemos nos entender em sociedade com os diferentes sujeitos que a formam e principalmente reforçar o respeito a uma das culturas primordiais e formativas de nosso povo, que apesar dos tempos, continua em luta para sua permanência.