“Qual o papel da crítica de arte hoje? Como reconhecer um crítico de arte? O que significa ser crítico?”. A partir destas perguntas, a historiadora da arte e educadora Luciara Ribeiro inicia a conversa de mais uma edição do Laboratório de Crítica, ação mensal do Programa CCBB Educativo – Arte & Educação que traz reflexões sobre o campo das artes, do jornalismo cultural, da memória e do patrimônio. Neste mês, somos convidados a observar quem são os agentes que ocupam o sistema das artes e as narrativas que por estes são criadas.
Logo no início do encontro, Luciara nos convida a refletir e questionar quem são os atuais críticos de arte em destaque no Brasil e sobre o que escrevem. Ela traz essa provocação partindo de inquietações geradas por uma matéria publicada na revista digital Arteref, na qual é apresentada ao público uma lista de críticos brasileiros considerados “essenciais” nas últimas décadas, revelando, no entanto, pouca diversidade étnico-racial e de gênero.
Observamos, porém, que o intuito da reflexão não é questionar o profissionalismo ou o papel desses profissionais, mas, sim, as estruturas que definem essas escolhas. O que está por trás da construção de uma lista tão restritiva sobre quem se destaca ou não em uma determinada área do conhecimento? Quem decide quem está dentro ou fora deste elenco? No que diz respeito à crítica da arte, percebemos que, ao longo de sua história, ela se sustenta principalmente sobre estruturas hegemônicas. Não à toa, teremos como herança o fato dessa área ser dominada principalmente por homens brancos que ocupam classes sociais altas e reconhecem outros semelhantes como inspiração.
Quem faz a crítica, faz para quem?
Ao reafirmar que “sujeitos não são neutros”, a convidada Luciara Ribeiro nos chama a atenção ao fato de que algumas escolhas feitas dentro do sistema das artes podem colaborar com a manutenção de estruturas sociais. Quando os agentes que formam a chamada crítica de arte emitem suas opiniões técnicas sobre um assunto, o fazem considerando seu local de fala, ou seja, o lugar que vivem e ocupam na sociedade. Nesse sentido, precisamos estar atentos e entender que, para a produção de uma crítica contra-hegemônica e antirracista, é necessário deixar de olhar apenas para a maneira tradicional como atuam esses agentes e passar a valorizar outras narrativas. Não podemos naturalizar a ideia de que um grupo seleto e pouco diverso seja escolhido ou escolha quem é ou não “essencial” para qualquer campo do conhecimento, uma vez que somos seres múltiplos vivendo em uma sociedade diversa.
Luciara aproveita para nos apresentar a curadora estadunidense Maura Reilly, defensora do termo ativismo curatorial, proposta que convoca esforços curatoriais a apoiar uma cultura visual “nas, das e para as margens: isto é, para artistas não brancos, não europeus, não euro-americanos, (…) as mulheres, as visões feministas e queers”. De maneira propositiva, esta seria uma das formas de romper com o status quo do sistema das artes e disputar espaços reservados a outras presenças dentro deste campo.
Mais do que reconhecer na cultura visual a presença contra-hegemônica de críticos, artistas e outros profissionais do sistema das artes, bem como seus trabalhos, a posição defendida por Luciara afirma que precisamos fazê-lo de maneira decolonial. Não se trata, afinal, apenas de diversidade: não devemos limitar esses grupos por sua especificidade, quando na verdade eles são parte integrante do que é universal. Descolonizar as instituições de arte e cultura não só permitiria tal anseio, como seria uma chance de revisar com afinco a própria crítica de arte, expandindo-a para novas possibilidades e maneiras de se apresentar.
Como descolonizar as instituições de arte e cultura?
Luciara trouxe para nós alguns caminhos que percebe como possíveis para construirmos práticas curatoriais e artísticas ativistas. Dentre o que foi elencado, observamos mecanismos individuais e coletivos que cobram uma postura de mudança das instituições e também outros que nos convidam a repensar nossas maneiras de nos relacionarmos com posturas hegemônicas. Ela também traz exemplos de ações que desenvolveu ou participou ao longo de sua trajetória, como é o caso de um texto-resposta elaborado a partir de questionamentos em relação à matéria citada no início deste relato, somados a um mapeamento de profissionais do campo artístico que possuem outras visões sobre a escrita da crítica de arte.
Para que possamos vislumbrar um horizonte de descolonização das instituições de arte e cultura, também podemos pensar na importância de uma ação conjunta desses espaços em relação aos campos da historiografia e da crítica de arte, uma vez que tal processo requer profundas revisões historiográficas. Aqui novamente aparece o ativismo curatorial: a fim de garantir que múltiplas vozes participem deste processo, aqueles que estão inseridos no sistema das artes possuiriam o papel de abrir espaço para os que estão fora possam participar ativamente das discussões.
Por fim, não podemos deixar de avaliar se existe uma real preocupação e um real envolvimento das instituições culturais sobre a possibilidade de colocar em debate suas coleções e acervos – ou se as mesmas estão apenas transformando em “tema” os estudos decoloniais, encarando-os como uma discussão temporária. Embora existam propostas e intervenções que denunciam e apontam essas questões, ainda se faz necessário intensificá-las, pois enquanto os projetos curatoriais se mantiverem exclusivamente nas mãos das elites, será certamente grande o trabalho para combater a reprodução de lógicas racistas e coloniais.
Educação decolonial e antirracista
Para finalizar este relato, experimento direcionar ao campo da educação algumas reflexões para o campo da educação. Durante o encontro, foi trazido ao debate, por exemplo, o fato de que boa parte dos materiais pedagógicos disponibilizados para professores trabalharem em sala de aula ainda hoje apresentam narrativas coloniais e contribuem para a manutenção de discursos racistas.
Em se tratando especificamente das artes, muitas publicações limitam-se a trazer aos estudantes apenas uma história da arte eurocentrada, contribuindo para a construção de uma cultura visual limitada e hegemônica. Como educadores, nos perguntamos, então, de que modo podemos combater o rígido currículo escolar que ainda prioriza o ensino de uma cultura eurocêntrica? Ou ainda: de que maneiras seria possível construir parcerias pedagógicas entre educadores que atuam dentro e fora das salas de aula, em prol da revisão desses conteúdos?
Ao longo do encontro, vimos também que, para atuar de modo propositivo, precisamos ter “consciência do que vivemos”. A esse respeito, somente quando entendemos onde estão as narrativas hegemônicas, torna-se possível trabalhar para que elas não silenciem as tantas outras vozes que existem em nossa sociedade.
Quando analisamos, por exemplo, os livros didáticos utilizados nas escolas, não podemos deixar de observar sua função ideológica. Nesses casos, a apresentação dos conteúdos é escolhida conforme as políticas daqueles que organizam o sistema educacional, seja ele público ou privado. Há muitos anos, no entanto, vários professores e estudiosos do campo da educação traçam críticas sobre o uso desses documentos em sala de aula, uma vez que, como conteúdos prontos, carregam narrativas com pouca abertura para construção de questionamentos. É preciso, portanto, disputar essas narrativas e combater as violências simbólicas ali expostas.
O mesmo raciocínio vale também para as exposições elaboradas nos museus e demais instituições culturais: para que se integrem às práticas educativas transformadoras, antirracistas e decoloniais, as instituições e seus gestores precisam estar atentos a quais políticas são submetidos, aos modos como se apresentam ao público e às maneiras como querem contribuir de maneira propositiva para essas transformações.