Consideradas manifestações típicas da cultura popular brasileira, as festas juninas foram disseminadas pelas tradições ibéricas e ressignificadas conforme cada região do país, culminando num processo que reflete as confluências culturais de diferentes contextos regionais. Embora haja diferenças entre símbolos, comidas e associações regionais, o evento realizado pelo Programa CCBB Educativo – Arte & Educação, dentro do Múltiplo Ancestral, não buscou se atrelar a uma forma específica, tampouco acentuar elementos “típicos”. Nosso intuito, por outro lado, foi suscitar a festividade como estratégia de ocupação do espaço público, entendendo-a como patrimônio cultural que atravessou a vida dos transeuntes que passavam pela rua da Quitanda em plena segunda-feira, dia 24 de Junho.
Para a organização da festa, o corpo educativo se dividiu em algumas atividades, de modo que cada barraca disposta na rua estaria associada a determinado tema e ação educativa: a Barraca da Pescaria foi desenvolvida pelo Grupo de Trabalho de Práticas Artísticas e Educacionais; a Oficina de Três Marias, proposta pelo Grupo de Infâncias; a Troca de Receitas, pelo Grupo de Outros Saberes; e o Correio Elegante, por fim, pelo Grupo de Acessibilidade. Trajando camisas xadrez, chapéus de palha ou então de cangaceiros, assim como vestidos coloridos e maquiagem de festa junina: foi nesse tom que recebemos o público espontâneo que participou do arraial que ocupou a rua da Quitanda.
Troca de receitas
A barraca Troca de Receitas apresentou uma atividade que despertou reflexões pessoais e coletivas nos transeuntes que circulavam pela rua no momento da festa junina. Surgida como desdobramento de um Lugar de Criação realizado no mês anterior, a ação sugeria que cada participante escrevesse, na página de um mesmo livro, alguma receita que soubesse de memória, estabelecendo ainda uma relação afetiva e histórica em relação ao motivo do prato escolhido existir e ser compartilhado.
Uma vez que as indicações haviam sido postas nesse livro, a ideia era que cada participante pudesse trocar sua receita com a de outra pessoa. Durante a festa junina, as receitas anteriormente compartilhadas pelo corpo educativo foram expostas em varais, de maneira que o público tivesse fácil acesso aos escritos, gerando trocas sobre as indicações. Muitas pessoas, por outro lado, afirmavam não se lembrar de receitas decoradas para escrevê-las, nos provocando a pensar o formato da oralidade, muitas vezes presente ao partilharmos algum conhecimento.
A troca de receitas, então, não se referiria apenas ao campo da culinária, mas também a histórias, momentos e contextos em que aquelas receitas haviam sido inventadas e passadas de geração em geração. Percebemos, nesse sentido, uma relação ancestral entre a alimentação, o conhecimento e a memória. As receitas dizem de tempos históricos e sociais específicos, dos tipos de alimentos aos quais certas pessoas têm acesso e outras, não, dos motivos que levaram tais fazeres a se tornarem conhecimentos repartidos entre famílias e comunidades. Tivemos, por exemplo, desde uma receita trazida por uma família que fugiu da Espanha durante a Primeira Guerra Mundial até outro prato que refletia as dificuldades econômicas atravessadas pelos brasileiros durante os anos 1990. (com Wesley Machado)
Três Marias, Correio Elegante e Pescaria
Na barraca de Confecção das Três Marias, jogo de crianças também conhecido como “pipoca”, o público mais velho e as crianças, com seus responsáveis, foram convidados a costurar alguns exemplares, gerando variadas conversas sobre a brincadeira. Muitas crianças conheciam o jogo, mas já não se lembravam exatamente como jogar. Houve, por outro lado, o caso de uma senhora que conhecia o jogo, mas sua neta, ainda não. A partir da proposta da festa, a senhora costurou um exemplar para levar à neta. (com Gabrielle Martins)
O Correio Elegante, por outro lado, gerou momentos de aproximação entre as diferentes equipes que atuam no edifício do CCBB SP. A brincadeira nos estimulou a perceber e acessar pessoas com quem convivemos diariamente, e neste caso a aproximação se deu a partir da descontração e do brincar. (com Pedro Ricardo)
A barraca de pescaria, de igual modo, estabeleceu um tom descontraído na relação com os transeuntes; o fato de ser um acesso gratuito chamava atenção de muitos passantes, que queriam os brindes oferecidos e se colocavam em situação de desafio na pesca. Havia dois tipos de varinhas de pescar: uma, com maior facilidade para a pesca, e outra, com mais dificuldade – e a maioria dos voluntários preferia se desafiar. Tendo em vista a grande população de pessoas em situação de rua na região central da cidade, oferecemos como brindes alguns kits de higiene, levando em conta a ocupação da rua como um espaço que também inclui essa população, constantemente marginalizada e invisibilizada.
Rua dos encontros
Sem se atrelar a tradições regionais específicas, a festa junina provocou numerosas situações de aproximação e identificação entre públicos externos e internos ao CCBB SP. Muitos transeuntes, estudantes e trabalhadores da região se dispuseram a passar um tempo na rua da Quitanda, trocar ideias e vivências a partir das ações propostas por uma edição do Múltiplo Ancestral que por vezes remeteu a memórias e modos de vida distintos do ritmo acelerado que predomina no centro das grandes cidades. Ao final, os educadores da equipe se reuniram para realizar outro rito associado às festas juninas: o traçado do Pau de Fita. Com boas doses de improviso, a performance gerou uma vivência bastante curiosa para o público que assistia, com momentos de riso e atenta observação.
Tendo o forró como carro-chefe, a trilha da festa trazia músicas típicas de festas juninas, fortalecendo uma combinação entre tradição e cultura popular que gerou identificação na população transeunte, estimulando a ocupação e a permanência, ainda que por alguns minutos, em um lugar que normalmente seria espaço de passagem. O convite a um tempo outro, assim como a percepção das brincadeiras como parte da cultura e como patrimônio intrínseco à construção das nossas formação social e identidade nacional puderam, assim, afirmar-se como ações efetivamente educativas na medida em que dispararam reflexões acerca do nosso contexto cultural e social por meio desse diálogo aberto em pleno espaço público.